Imagine gastar 1 bilhão de reais em um projeto para, no final, perceber que ele não resolve o problema que deveria. Foi exatamente isso que aconteceu com a ASX, a bolsa de valores da Austrália, ao tentar substituir um sistema de depósito e liquidação de ações com blockchain. Uma revisão independente revelou que a tecnologia não aceleraria os tempos de liquidação nem reduziria custos.
O projeto tinha como objetivo substituir o sistema CHESS, uma plataforma central de depósito e liquidação utilizada pela ASX desde os anos 1990. O CHESS, escrito em COBOL, é conhecido por sua robustez, mas também por ser um sistema legado que apresenta limitações quando se trata de escalabilidade e integração com novas tecnologias. A escolha de utilizar blockchain visava modernizar esse sistema, trazendo maior eficiência, velocidade e redução de custos – metas que, ao final, não foram alcançadas.
A tecnologia é uma ferramenta e deve ser utilizada para resolver um problema, portanto o caminho natural, geralmente é: Tenho um problema, logo busco uma ferramenta (ou tecnologia) para ajudar a resolver este problema. Mas, observo que tecnologias que estão no “Hype” como é o caso do blockchain, tendem a seguir um outro caminho, que é: Tenho uma ferramenta (ou tecnologia) vou tentar usa-la para resolver todos os problemas que eu encontrar até que um se encaixe.
O problema é que esta abordagem pode causar “falsos positivos”, ou seja, casos-de-uso que aparentemente dão certo ou até de fato funcionam, mas só em “laboratório”. Quando vão para a rua resulta em completo caos. Na minha opinião, isso acontece porque na ânsia de ser “pioneiro” ou de estar na vanguarda de uma tecnologia que está no hype ou até mesmo por alguma pressão externa, deliberadamente escolhemos dar ênfase apenas nos pontos positivos ou nas qualidades daquela tecnologia, e muitas vezes, deixamos de pensar criticamente sobre a eficiência/viabilidade de utilizar tal tecnologia para resolver um dado problema.
É como usar um martelo para colocar um parafuso na madeira. O martelo (a tecnologia) pode funcionar em um ambiente controlado, onde a madeira é macia e o parafuso é adequado. Mas, no mundo real, essa solução é ineficiente e pouco prática. Mesmo assim, você poderia convencer um público entusiasta com esta demonstração em ‘laboratório’, conquistando aplausos e investimentos. Porém, quando essa ideia é testada em condições reais, o resultado costuma ser desastroso.
Para o exemplo acima, provavelmente seria muito mais eficiente usar uma chave de fenda (ou uma chave philips) do que o martelo. Mas para chegar nesta conclusão seria necessário primeiro definir muito bem o problema que se quer resolver para então analisar quais são as qualidades e os defeitos da tecnologia “martelo”, assim como analisar outras tecnologias (ferramentas) semelhantes, para só então selecionar qual seria a ideal para resolver o problema.
Sei que não é fácil conhecer todos os detalhes antes de tomar a decisão, e não estou argumentando contra a experimentação. Muito pelo contrário, acredito que uma das melhores formas de obter o conhecimento necessário para tomar certas decisões é através de experimentações como POCs (provas de conceito) e MVPs. Porém, é aqui que precisamos ser cautelosos com a premissa da experimentação. Neste momento, não podemos agir como astrobiólogos tentando encontrar vida em outros planetas, que precisam apenas de uma evidência clara para concluir que existe vida além da Terra. Devemos ser mais como matemáticos buscando a prova de um teorema, que precisam encontrar uma demonstração rigorosa e abrangente, válida em todos os casos possíveis, sem deixar margem para dúvidas.
A ASX, a bolsa de valores da Austrália, pode ter feito a seguinte análise para tomar a decisão de utilizar blockchain: Problemas de DvP (delivery versus payment – Entrega contra pagamento), são problemas muito comuns em plataformas de deposito e liquidação. Plataformas de blockchain como Bitcoin e Ethereum fazem DvP o tempo todo e resolveram muito bem este problema. LOGO, devo utilizar uma plataforma de blockchain para resolver meus problemas de DvP.
E seria uma decisão muito acertada se não fosse por uma característica importantíssima: A capacidade limitada de TPS das blockchains. TPS = Transactions per second, ou seja, transações por segundo. O Bitcoin processa cerca de 7 transações por segundo, já o Ethereum este número se aproxima de 30 transações por segundo. Uma plataforma de depósito e liquidação de ações tem que ser capaz de lidar com picos na casa de dezenas de milhares de transações por segundo, com uma latência na casa dos milissegundos, algo quase impossível para uma blockchain.
A história da ASX nos ensina que inovação sem estratégia é um caminho arriscado e caro. A tecnologia é uma ferramenta poderosa, mas só atinge todo o seu potencial quando é usada para resolver os problemas certos, da maneira certa. Antes de embarcar em qualquer projeto, pergunte-se: Estamos escolhendo a tecnologia porque ela é realmente a melhor solução ou apenas porque está no hype?
Seja criterioso. Invista tempo na definição do problema, na análise de alternativas e na validação com experimentos bem fundamentados. Lembre-se: pioneirismo não é sobre quem adota primeiro, mas sobre quem transforma ideias em resultados duradouros.
E você? Como sua empresa está garantindo que as decisões tecnológicas sejam tomadas com base em fundamentos sólidos e não no entusiasmo do momento?